Mas a entrevista não para por aí, portanto segue na íntegra:
(15/01/2003 - 10:18) - Por Pedro Cientista
Uma das bandas da hardcore mais bem sucedidas de Teresina, o Káfila teve seu CD comentado no site ZonaPunk. Foi sobre esse e outros assuntos que, durante a madrugada de segunda-feira, eu conversei com Fernando Castelo Branco, baixista da banda. A seguir a entrevista na integra.
A Káfila é uma banda que já tem vários anos de estrada. Mas há quanto tempo a banda realmente existe?Fernando Castelo Branco - Desde março de 94.
[caption id="attachment_378" align="alignnone" width="550" caption="Sandro Saldanha, Eduardo Crispim e Fernando Castelo Branco. Uma das formações do Káfila"]
E como foi o começo? Vocês tinham idéia de que iria durar tanto?
Fernando - Não tinha idéia nem de fazer show...
Mas como foi o começo? Ensaios no fundo de casa? Como era que aconteciam os ensaios?
Fernando - Os ensaios eram na casa dos pais do Sandro (bateria), no Acarape (Z. Norte), na garagem mesmo.
E vocês começaram a tocar por quê?
Fernando - Desde molequinho eu sempre quis tocar numa banda, ter CD, viajar tocando. Daí eu conheci o André e ele já tinha tocado em várias bandas dessas de festival de escola, fazia músicas e letras, gostava de umas bandas que eu gostava também, então eu fiquei nessa pilha de ter uma banda com ele. Um dia eu comprei um baixo e ele apareceu aqui em casa com umas músicas, passou pra mim e eu já conhecia o Sandro da escola.
E em casa, como foi a reação?
Fernando - Ah! Minha mãe nunca engoliu essa estória de banda, se fosse por ela eu era um advogado almofadinha. Ela veio aceitar mais há pouco tempo, quando ela viu que a coisa era séria, que tinha todo um trabalho rolando.
E quais foram as manhas pra poder ensaiar sem torrar o saco da mãe?
Fernando - A gente ia ensaiar na casa do Sandro, porque ele já ensaiava com outras bandas lá e o pessoal da casa dele não grilava. Depois fomos ensaiar na minha casa, quando minha mãe saía pra trabalhar. Ensaiamos também durante um bom tempo numa fábrica de malhas naquela região da Pacatuba (próximo à praça da Costa e Silva), mas mesmo assim lá alguém ligava e a polícia vinha pedir pra parar.
Então era muita luta pra poder ensaiar...?
Fernando - Com certeza.
E vocês começaram fazendo covers ou já foram fazendo logo músicas próprias?
Fernando - O André, nosso primeiro guitarrista, tinha várias letras e músicas, ensaiamos primeiramente essas músicas dele. Cover a gente só pegou pra fechar as músicas do primeiro show, pra encher lingüiça mesmo. Foram aparecendo outras e os covers foram sumindo, perderam espaço, não tinham mais utilidade.
Falando em covers...Como você vê a cena de Teresina?
Fernando - Cena? Uma cena existe onde a cultura fora da mídia sobrevive. Aqui não tem lojas onde se vendam CDs independentes, não circula fanzine, etc...Como pode ter cena?
Certo, então redefinindo a pergunta: O que você acha do que está acontecendo em THE musicalmente falando?
Fernando - Quanto a bandas de cover, acho que não acrescentam nada. Me refiro a bandas que trabalham em cima de "coverizar" uma banda especificamente, não a galera que está começando e precisa fazer uso do cover pra fechar repertório. Eu vejo de uns tempos pra cá muita banda de modinha, mas como sempre, quem é bom fica, quem é ruim simplesmente desaparece...Tem um povo que está chegando agora que é muito papo, muita futriquinha de internet, show que é bom, ver se a banda vale alguma coisa, proposta que é bom, necas.
E antigamente? Existiam tantas bandas quanto hoje? Na época que vocês apareceram, foi uma das bandas, ou a banda que surgiu?!
Fernando - Quando a gente começou tinham várias bandas na mesma situação da gente: não eram conhecidas, não tinham onde ensaiar, batalhavam pra tocar nos lugares. Hoje em dia, a vida pra quem começa é bem mais fácil, tem estúdio de ensaio, loja de instrumento, internet pra pegar música e cifra, tablatura. A gente precisava correr a cidade inteira atrás de equipamento pra ensaiar, o pessoal mais chegado emprestava algumas coisas, caixa, microfone. Era difícil até fechar som pra show. Se você ligasse pra uma equipe de som profissional querendo alugar, eles até riam da sua cara e batiam o telefone. Muitos shows nossos no começo foram feitos com o som do Lino (atualmente baixista do Capitão Guapo)
Então a raça era muito maior, lógico?
Fernando - Não sei se era maior, mas com certeza a gente sabe que se está hoje em algum lugar foi porque correu atrás.
O som da banda é hardcore. Quais são as principais influências que vocês têm?
Fernando - 80% da nossa influência vem de sons dos anos 80, de quando a gente começou a ouvir música, não só de HC anos 80.
Então entra desde o trash do Metallica até o heavy metal tradicional do Iron Maiden, e lógico, passando pelo hardcore?
Fernando - Entra até o pop dos Smiths.
The Smiths é legal.
Fernando - Todos na banda gostam muito de Smiths
Quantas musicas ao todo vocês têm?
Fernando - Contando com as do CD e com metade das do CD novo, temos umas 23, eu acho...Não lembro de cabeça.
E falando em CDs, de quantos vocês participaram e quantas demos vocês têm?
Fernando - Demos nos lançamos duas, a Amarela, de 95 e "Mais Perto Do Que Longe Mas Ainda Falta Um Bocado", de 96. Coletâneas nós saímos na Apocalipse 2000, da Tamborete Entertainment, do RJ. Lá a gente está no meio de uma galera como Inocentes, Ação Direta, DFC, Jason, Insanity, Zumbi do Mato, etc. E agora em setembro de 2002 saiu o "Coletivo", meio atrasado, mas está na área, é o primeiro disco de HC lançado no PI e a gente se orgulha muito disso, por que a gente sabe da batalha das bandas de HC daqui e a gente se sente mostrando que é possível meter a cara e fazer.
[caption id="attachment_379" align="alignnone" width="375" caption="Coletivo e Playground, os dois discos lançados pela banda"]
E o CD novo recebeu uma ótima critica de um site na net, não é verdade?
Fernando - Sim, do ZonaPunk, devem sair outras criticas em portais de música e web-zines, além de revistas.
E como é ter o trabalho reconhecido?
Fernando - Depende do que se usa como parâmetro para "reconhecimento"... Se a gente manda material pra fora as pessoas gostam, falam bem, não é só por "brodagem", afinal elas nem conhecem a gente pessoalmente, enquanto que aqui o "reconhecimento" é por amizade, se as pessoas acham você um cara legal, elas falam bem, arrumam show. Nosso trabalho nunca foi reconhecido aqui, pelo contrário, temos fama de sermos maus músicos. Mas quem curte nosso trabalho taí nos nossos shows, isso de se dar bem é segundo plano. Talvez até fique sem sentido se um dia a gente for queridinho.
Por quê?
Fernando - Porquê a gente não entrou nessa por fama, pra dar autografo ou pra ter uma fila de "marias-alavanca" esperando a gente descer do palco. A gente só gosta de subir lá e tocar nossas músicas. Primeiramente, nos agrada mais pessoas gostarem, falarem bem da banda. Conhecerem a gente na rua, isso é conseqüência, vem depois e naturalmente. A gente nunca pensou em fazer nada pra agradar ninguém além de nós mesmos. Mas isso por um lado é bom por que funciona como um filtro. A gente não vive nesse "mundo Rock'n'roll" que muita gente delira que exista. Somos pessoas normais, como qualquer uma que você cruza na rua, na fila do banco, no supermercado...
Esse deveria ser o intuito de toda banda séria...
Fernando - É, né? Mas as pessoas tem esse modelo de rockstar americano, de Marylin Manson ou algo que o valha, e muitas delas caem nuns delírios bestas, não sei em que mundo esse povo vive, sinceramente... A música, que é o objeto central, fica em segundo plano nesse caso, aí a qualidade vai embora...
Teve um show de vocês na Templum em que tinham pouquíssimas pessoas, mas outros shows, como no Noé Mendes e no "Boca da Noite" o público foi maior. Isso, até onde eu entendi, não afeta muito o grupo...
Fernando - Se 5 ou 5.000 pessoas foram lá ver o show, elas vão ver, é uma questão de respeito. Se elas saíram de casa pra ver Káfila, elas vão ter Káfila. E o "Boca da Noite" é de graça, não sei bem se pode se encaixar no exemplo.
Acho que se encaixa, por que mesmo sendo de graça o pessoal só agita e participa do show quando quer...Ou não?
Fernando - O "Boca da Noite" é um projeto muito especial. A gente toda vez que toca lá faz questão de frisar isso, porque é o governo pagando os músicos pra dar cultura de graça pras pessoas. E a produção se preocupa muito com a agenda do "Boca...", não é assim chegou lá e marcou. Por essas e outras, independente do que toque lá, a casa está sempre cheia, muita gente às vezes nem sabe o que vai rolar no dia. É diferente do Rock na Veia, que tem cartazes de divulgação, já é um evento que faz parte de um calendário, as pessoas sentem falta se demora pra rolar, etc. Quando elas vão ao RNV, por exemplo, elas vão atraídas pela escalação das bandas, além de ser pago, se as pessoas estão ali é porque estão realmente a fim de ver os shows, enquanto que no "Clube dos Diários" muita gente pega show bom simplesmente porque ficou de bobeira.
Mas os dois interessam da mesma forma pra você?
Fernando - Certamente! Como eu acabei de dizer, o "Boca da Noite" é um projeto IMPORTANTÍSSIMO tanto pras bandas quanto pro público. Vamos ver agora nesse governo novo como vai ser a atenção deles pra cultura, se vai haver interesse pelo "Boca da Noite", que já virou uma espécie de termômetro cultural. E o Rock na Veia é um espaço bom, uma estrutura boa, a produção rala pra divulgar, porque seria ruim de alguma forma? Ruim é não ter nada.
Existe toda uma expectativa em torno do novo governo e os projetos culturais de Teresina. Tomara que não seja um fiasco, não?!
Fernando - Eu prefiro pensar que o pior já passou. Governo de direita quer mais é que a cultura do povo se estrague, quer o povo cego pra não ter horizontes e continuar votando na laia deles. Mas agora que o povo varreu 150 anos dessa cambada pra fora do governo, eu acho que vai ser uma administração mais aberta pra cultura, se não, ao menos vai haver portas abertas pras pessoas que fazem cultura serem ouvidas mais facilmente. Os meios de produção culturais a nível estadual e municipal são muito centralizados nas mãos de poucas pessoas há muito tempo, isso também, ao meu ver, tem chance de mudar agora.
É o que esperamos... E tocando nesse assunto... A temática das letras de vocês trata de política?
Fernando - Agora você chegou na pergunta que eu estava esperando...Em 97, nos mandamos nossa segunda demo pra uma revista de SP que tem nome e circulação nacional. Por um infortúnio do destino, essa demo caiu nas mãos de um critico(?) que não curte HC, resultado: todos os preconceitos dele contra o estilo foram descarregados na resenha. Muita gente daqui, alguns com dor-de-cotovelo, ajudaram essa resenha equivocada a virar lenda, e a gente ficou com fama de "banda engraçadinha"...Ora, santa inocência, Batman! As letras estão no encarte das demos, do disco, nós preferimos pensar que as pessoas não são massa de manobra, elas sabem ler e entender.
Certo, mas pra quem não tem acesso às demos... Qual o conteúdo!?
Fernando - Nós temos letras que falam de morte, dinheiro, repressão, do orgulho que a gente tem de ser parte de uma coisa que incomoda, que mexe com as pessoas, que tira as pessoas da letargia do dia-a-dia e do senso comum. Tentar chegar na frente e reduzir isso à "letras engraçadinhas" é duvidar da inteligência alheia. A "birra" dessas pessoas é por que a gente não apela pro discurso fácil e infantil, a gente prefere usar da ironia e do sarcasmo, formas de arte que vem desde a Grécia antiga (quem estuda História sabe...).
Falando em letras... Como é o processo de composição da banda?
Fernando - As minhas eu vou fazendo e guardando, quando sai música nova eu pego algumas e vejo a questão da métrica. Mas tem outras, como "Tô Andando", que o Sandro fez escrevendo com o papel apoiado na perna, freestyle mesmo.
E todas as músicas são aproveitadas, ou há algum tipo de filtro?
Fernando - O critério é não ficar parecido com nada que a gente já tenha ouvido, e se alguma coisa ficar muito "quadrada" pra ouvir, a gente dispensa. Mas isso é muito raro.
E como é decidido quem canta as músicas?
Fernando - Como nós três fazemos vocais, o que ficar mais confortável pra fazer as duas coisas (tocar e cantar) segura a peteca. E por incrível que pareça acaba ficando equilibrada, a divisão.
É o que os shows transmitem.
Fernando - Como assim?
A gente percebe que a banda não fica pendendo para um lado só...
Fernando - Ah! Sim! Os vocais. A gente toca faz oito anos, tem uma espécie de "telepatia" já. Já sabemos o jeito um do outro de tocar. É uma questão de entrosamento, qualquer um chega nisso ensaiando.
E a banda já teve muitas formações nesses oito anos?
Fernando - No começo eram eu, o Sandro e o André. Em fevereiro de 96 entrou o Rubens no lugar do André. Em 2001, o Rubens precisou se ausentar alguns meses da banda pra resolver umas paradas pessoais e o Pádua (então no Hi-Tec Hate) ficou no lugar dele por seis meses porque a gente precisava cumprir uma agenda. Quando o Rubens voltou ficamos com duas guitarras, pra fazer umas experiências de arranjos nas músicas novas. Mas aí o Pádua preferiu sair pra se dedicar a outra banda que ele montou depois que o Hi-Tec se separou, o Sound Creep. Aí voltamos a ser trio como antes... A gente brinca com ele dizendo que ele foi o "Pat Smear do Káfila" (guitarrista que acompanhou o Nirvana na turnê do disco "In Utero", mas nunca chegou a ser da formação oficial da banda. Acabou virando membro fundador do Foo Fighters)
E agora estabilizou...
Fernando - Acho que a gente tem um karma de power-trio.
Quais os projetos da banda agora?
Fernando - A gente está em plena divulgação do "Coletivo", vamos começar a marcar shows fora do estado pra esse primeiro semestre. Paralelo a isso, a gente está esvaziando as gavetas pra fazer músicas novas e montar o repertório do próximo CD, que se tudo der certo, está na rua até o final do ano.
Como última "pergunta", gostaria de deixar o espaço aberto para a banda.
Fernando - Queria agradecer a paciência de fazer essa entrevista on-line, via IRC. Agradecer ao Fábio e a equipe do Full Rock por proporcionarem um espaço democrático pras bandas poderem interagir mais ainda com as pessoas que acompanham o trabalho delas. Está certo que tem uns "Joselitos" que não sabem usar o que o site proporciona, mas fazer o que, né? Queria avisar também em primeira mão que o "Coletivo" entrou no catálogo de um selo português chamado Ataque e também de um alemão, o Horror Bussinez. Mais um leão (e dos grandes) que a gente matou! Finalizando queria deixar um abraço pra galera que curte nosso som, que vai ao show não por causa do nosso cabelo (eu nem tenho mais), das nossas roupas ou da marca dos nossos instrumentos; e dizer que aquele recado do encarte do CD pros manés que falam mal da gente continua valendo: Obrigado pela divulgação! É isso.
Infelizmente eu errei: o governo de esquerda conseguiu sucatear mais ainda a cultura desse estado.
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